sábado, 10 de outubro de 2009

Deixa Eli entrar

Ah, lá vou eu me lançar no mundo desconhecido, mas tão atraente (para mim) que é me arvorar a escrever e (pior!) publicar minhas impressões sobre filmes. Aliás, esse ar de receosa é pura falsidade minha (háhá). Não me importo nenhum um pouco em publicar o que eu senti e admirei em uma obra, seja ela qual for. Não tenho nenhuma pretensão de especialista e, portanto, não me sinto com nenhuma responsabilidade neste sentido. Lá vou eu então falar sobre “Deixa Ela Entrar”. Sem dúvida, uma das melhores produções que eu assisti esse ano no cinema. Digo de antemão que odeio filmes de terror e suspense e não vou me alongar explicando meus motivos. Mas vale dizer isso para corroborar mais de centenas de pessoas que falaram que o filme é mais que um filme de terror, algo que na verdade acho que nem precisa mais ser dito. Aliás, muitas coisas não precisam mais ser ditas talvez. O fato de se tratar de uma história de solidão, por exemplo, é a primeira coisa que qualquer expectador vai conseguir perceber e nenhum crítico ou jornalista deveria mencionar esse aspecto mais, pois, posso estar sendo radical, mas a certa altura me pareceu até uma subestimação do público. Também não vou falar de outras questões menos óbvias, mas interessantes, como a fragilidade humana, a solidão intransponível e inerente de cada um, a morbidez da existência, enfim... Como toda boa obra, Deixa Ela Entrar tem um milhão de ganchos, de “botões” para apertar e nos levar para mundos diversos do pensamento e da imaginação. O que me deu um estalo na alma e é o que me trouxe até aqui para escrever foi um aspecto singular nesse mar de sensações, adivinhações, interpretações, especulações, etc. Sem querer ser dicotômica (minha cabeça ocidental pensa assim mesmo ainda, vá lá), mas sendo, de certa forma, pensei na malícia e inocência que habitam a alma humana. Não me considerei tão dicotômica assim, pois não vejo essas forças como exatamente opostas do tipo morte e vida, mau e bom. São força que se relacionam e, sim, a uma primeira vista parece mesmo se tratar de uma substituição, uma dando lugar a outra. Mas o que quero dividir com vocês foi justamente uma das mais belas metáforas que eu já vi sobre o tema, encarnado na personagem de Eli, a vampirinha (sobre resumo do filme, ver http://guia.folha.com.br/cinema/ult10044u632354.shtml). Olhem que bela forma de se colocar a questão pensando apenas no personagem: uma vampira criança, de 12 anos. Em determinada passagem do filme, na qual Oskar (o garoto protagonista) descobre a identidade da amiga e vai até a casa dela, demonstrando uma revolta típica de um adolescente “enganado/traído”, cheio de perguntas, uma se destacou aos meus sentidos. Ele: - Quantos anos você tem de verdade? E ela me vem com a resposta mais brilhante para concluir a mais linda poesia de uma bem construída metáfora: “- Tenho 12. Mas tenho 12 há muito tempo”.

Não tirem conclusões ainda. Só dêem uma pausa aos seus pensamentos para deixar essa frase penetrar, ou melhor, entrar e sair livremente dos seus sentidos. Em que ouvir isso mexeu com você? Com o que você considera de seu e não da personagem? Pois bem, em mim fez surgir um turbilhão de idéias e sentimentos que poderiam dar um livro inteiro, mas vou me limitar a tratar do que já me referi no início: inocência e malícia. Uma interpretação possível, e válida, vai pensar que a experiência de Eli de tantos anos com seus 12 anos a tornaram maliciosa o suficiente para ter planejado maquiavelicamente todo o enredo do filme. Todo o jogo do amor e da aproximação entre ela e Oskar nada mais era que um truque bem arquitetado da sedução que a garota aprendeu a exercitar ao longo dos anos. Outra interpretação não menos sugestiva é a que entende que, mesmo com tantos anos, a vampira está aprisionada em seus poucos 12 anos, assim como sua maturidade e o egoísmo próprio desta fase em que estamos buscando nossa identidade e auto-afirmação. Então o enlace amoroso, fruto de um encontro de almas solitárias, como pode ser também enxergado, estaria mais perto do espírito da inocência desses indivíduos no caminho da vida. Acontece que um dos mais interessantes lampejos de beleza da história, reside no fato que de dual Eli não tem nada. Ela tem 12 anos sim e tem experiência sim. Eli é a malícia brincando de inocente e (não ou) a inocência flertando com a malícia. Ela não excluí nada e não separa nada. Eli pode ser vista como uma heroína mística talvez, pensando na teoria antropológica do imaginário (para quem quiser aprofundar isso ler Gilbert Durand), pois ela é a mistura mais misturada que eu já vi em um personagem, já que além de vampira (personagem noturno, sem o dualismo vilão/herói evidente), ela ainda é uma criança: como todos nós, uma criança crescida, talhada pela experiência, mas com tanto ainda a ser visto, tocado, ouvido, cheirado, pensado, refletido, enfim... A personagem de Eli rompe os laços que separam a malícia da inocência e não substitui uma pela outra, como nosso pensamento dualista se sente mais confortável de conceber. Suas ações podem ser interpretadas pelos dois viés, é lógico, mas me parece de uma riqueza muito mais humana enxergá-las como essa mistura que torna um traço intrinsecamente ligado ao outro, sem a possibilidade de apreendê-los em estado isolado, como se a interligação e interdependência deles fosse o que existe de fato na natureza das coisas, na humana, na não-humana, simplesmente assim.